Em 7 de dezembro de 1972, astronautas à bordo da missão espacial Apolo 17 realizaram a primeira fotografia da Terra vista por inteiro. Com o Sol as suas costas, a equipe da NASA teve as condições ideais para registrar a face iluminada do planeta – sua circunferência perfeitamente desenhada flutuando solitária na noite do Cosmos.
Mesmo com as espessas nuvens do ciclone Tamil Nadu encobrindo boa parte do globo, a fotografia capturada pela câmera Hasselblad dos astronautas revela a Terra não apenas de um ponto de vista até então inédito, mas também de um modo que a cartografia não a costuma representar – sem as demarcações de fronteiras políticas. Surgidas como de um olho extraterrestre, essa imagem apresenta o planeta em um estado de serenidade que pouco condiz com os problemas enfrentados aqui em baixo. Sem os limites nacionais, os continentes parecem convidar ao livre trânsito do olhar e do corpo.
No entanto, é exatamente por essas linhas que se escreve uma história onde, como afirma a escritora Susan Sontag, “a guerra foi a norma, a paz, a exceção”. O domínio territorial e de seus recursos são a fonte das guerras desde os tempos mais remotos. Com as guerras há a subjulgação dos povos; com a subjulgação, a busca da redenção pela fuga.
Desde a narrativa bíblica do êxodo dos hebreus liderados por Moisés, até o atual fluxo de refugiados sírios que desembarcam diariamente no continente europeu, a história não cessa de se repetir.
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O drama vivido por aqueles que são obrigados a deixar seus lares em busca de redenção é tema recorrente na produção fotográfica do passado e do presente – tão ou mais recorrentes quanto são as situações migratórias. Milhares de imagens documentando os dramas de refugiados foram criadas, distribuídas, publicadas e expostas no último século com o aparente intuito de conscientizar as mentes e influenciar a política. São fotografias que prometem nos aproximar do drama destas pessoas, compartilhar sua dor, afirmar sua existência.
Não só pela recorrência com que tais imagens são distribuídas pelas agências de notícias, mas também pela abordagem grandiloquente e teatralizada – que prioriza os ângulos mais espetaculares, os gestos e expressões mais desesperados – é que, para Sontag, ao invés de nos engajar em suas causas, tais fotografias nos convidam “a sentir que os sofrimentos e os infortúnios são demasiado vastos, demasiado irrevogáveis, demasiado épicos para serem alterados, em alguma medida significativa, por qualquer intervenção (…).” Com essa escala colossal dada pelos fotógrafos ao drama privado de milhares de pessoas, continua a escritora, “a compaixão pode apenas debater-se no vazio – e tornar-se abstrata”.
Um exemplo atual, entre tantos possíveis, desta abordagem fotográfica apontada por Sontag, e que trata particularmente das crises migratórias, é a série de imagens que o fotógrafo canadense Kevin Frayer fez para a Getty Images em 2017, de famílias muçulmanas de Mianmar em fuga para Bangladesh.
Nestas imagens (premiadas com o segundo lugar na categoria General News do World Press Photo deste ano) parece haver a necessidade de sobrecarregar de drama uma situação por si só excessivamente dramática. As fotografias de um preto e branco de nitidez descomedida apresentam o céu exageradamente coberto por densas nuvens sobre as cabeças daqueles que fogem por suas vidas – como se nem o firmamento oferecesse a mínima perspectiva de redenção. Ao priorizar as expressões de desespero, Frayer faz com que essas pessoas, aqui carentes também de identidade, sejam reduzidas inelutável e exclusivamente ao papel de vítimas.
A composição arrojada, a nitidez cristalina, o preto e branco dramático, os momentos épicos – nada deve se parecer menos com a tragédia de quem passa pelo trauma da migração forçada do que estas imagens distribuídas diariamente as centenas pelas agências de notícias internacionais.
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Olhar para a imagem da Terra feitas pelos astronautas da Apolo 17 tampouco nos oferece um vislumbre de compreensão das tragédias humanas. Ela parece ser, no entanto, um convite a colocar as coisas em perspectiva. A colossal escala do planeta, inconcebível para nossa frágil consciência, parece estabelecer a trama geopolítica em seu devido contexto: um jogo incoerente tramado como se fosse o único possível neste vasto e ancestral corpo celeste. Desta vista remota – que parece negar o elogio à proximidade no famoso bordão do fotógrafo Robert Capa – nossa existência mostra-se irrisória, nossos conflitos ainda mais absurdos.
Se fotografias como as que Frayer fez em Bangladesh buscam engajamento pelo choque ao retratar cenas aparentemente épicas, que atentam ao puramente emocional do espectador, esta tomada da Terra, feita com intenções prioritariamente científica, parece fazer um apelo à imaginação. Talvez mais do que os fatos, ela parece dizer, o que precisamos é de imaginação.
Nesta imagem da Terra vista por um olho extraterrestre – ampla e sem as barreiras traçadas nos mapas – parece ser possível, pelo menos, usar a tecnologia, a linguagem artística e o pensamento crítico pra imaginar outros mundos, outras sociedades, outras lógicas.
REFERÊNCIA
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.