Tema abrangente e extremamente atual, a diáspora é problematizada de forma recorrente no âmbito da fotografia contemporânea. Como forma de adiantar as discussões do 12o FestFoto, montamos uma pequena lista de cinco livros de fotografia que abordam de forma diversa o tema desta edição. Para ajudar nesta seleção, convidamos o fotógrafo e designer Fabio Messias, cuja pesquisa sobre fotolivros é referência no país.
MARCADOS – Claudia Andujar (Cosac Naify, 2009)
Da monumental obra de Claudia Andujar, talvez este livro, lançado pela Cosac Naify em 2009, seja a mais avassaladora representação da tragédia dos povos originários brasileiros. Andujar, que produziu uma série de trabalhos sobre os povos indígenas – entre livros, exposições e reportagens fotográficas – apresenta aqui uma série de fotografias feitas inicialmente sem qualquer intenção estética ou expressiva.
Militante da causa indígena, a fotógrafa acompanhava, no início dos anos 1980, uma pequena equipe de médicos empenhados em organizar o trabalho na área de saúde junto à população Yanomami, na selva amazônica. Uma das tarefas da fotógrafa nesta empreitada era registrar os pacientes atendidos. Como na cultura Yanomami não existe o conceito de nome próprio, Andujar fotografava-os com uma pequena placa contendo um número, para assim facilitar a identificação.
Quase três décadas depois, Claudia Andujar revisita essas fotografias e, ao coloca-las lado a lado, parece querer evidenciar a ambiguidade deste seu gesto de marcar. As imagens dos que foram marcados para serem salvos, agora descontextualizadas dos relatórios, impresso nas páginas do livro, são a representação deste processo irreversível – do apocalipse que a história teima em chamar de colonização.
Marcados é, portanto, a expressão inelutável do processo de extermínio dos nossos povos originários, assim como da tentativa desesperada de contê-lo. (Marco Antonio Filho)
COME AGAIN – Robert Frank (Steidl, 2006)
Diferente da consagrada figura do fotógrafo-de-guerra, que se atém à documentação dos combates no calor dos acontecimentos, buscando o choque e o drama imediato, em Come Again Robert Frank visita as ruínas da cidade de Beirute um ano após o fim da guerra civil que assolou o Líbano – uma guerra em grande parte motivada pelo intenso fluxo migratório na região, que deixou mais de cem mil mortos e a capital do país em ruínas.
É sobre Beirute que Frank se ateve, em novembro de 1991, com uma câmera Polaroid e o olhar crítico e melancólico que fez dele um dos principais fotógrafos do século XX.
Come Again é, na verdade, o fac-símile de um caderno onde o fotógrafo realizou uma série de colagens a partir das polaroids que tirou em sua visita à Beirute. Com cola e fita, Frank justapõe diferentes imagens da cidade devastada – ora como pequenas sequências proto-cinematográficas, ora como panoramas desajeitadas que tentam dar conta da vastidão da catástrofe.
Nesta sequência de colagens, Frank traz a intensidade de seus trabalhos autobiográficos realizados anteriormente – que buscavam lidar com o luto da perda de seus dois filhos, Pablo e Andrea – para este drama coletivo. O gesto de unir as imagens fragmentadas, ao mesmo tempo que sublinha o drama da cidade arrasada pela guerra, parece ser a tentativa de reparação simbólica de uma nação que busca se reerguer após o trauma. (Marco Antonio Filho)
ELEMENTARY CALCULUS – J. Carrier (Mack Books, 2012)
À partir de 2005, Israel se tornou um recorrente destino de imigrantes africanos vindos principalmente da Eritreia e do Sudão. J. Carrier, fotógrafo norte-americano que viveu boa parte da primeira década dos anos 2000 entre a África e o Oriente Médio, conhece muito bem esta história e acaba por construir uma delicada e comovente narrativa sobre a esperança e a dor dos que tentam a imigração ilegal em busca de trabalho em uma das regiões politicamente mais complexas do mundo.
O livro não entrega muita informação logo de cara, propondo através das páginas uma caminhada do leitor por ruas e vielas, onde em muitos momentos encontra homens e mulheres de origem principalmente africana (mas há também asiáticos) em telefones públicos, fazendo ligações. Apesar de serem fotografias bastante descritivas e diretas de pessoas telefonando, quase todas de uma distância muito próxima, o fato é que não sabemos mais nada, e portanto só podemos supor para quem eles telefonam (familiares que ficaram em seus países de origem?). É aí que reside o drama e o simbolismo destes retratos.
De fato, o autor trabalha com a informação simbólica de suas fotografias para a construção da narrativa desde a primeira imagem após o título: o detalhe de um muro, feito de pedras imensas, onde um pombo branco pousa em uma fenda. Todos sabemos que o pombo é um dos grandes símbolos da comunicação no mundo antigo, e Carrier realça tal simbolismo ao colocar na sequência uma fotografia de um telefone público. Mas como o leitor atento perceberá por todo o livro, informações aparentemente fáceis e superficiais, como a que emerge dessa dupla de fotografias, escondem informações bem mais críticas e desafiadoras.
Há na verdade uma informação importante para a leitura do livro logo em seu início, mas que tende a passar batida em uma folheada rápida ou até mesmo em uma primeira leitura: impressa antes que o conjunto de fotografias se inicie, um pequeno trecho de um poema do poeta e ativista palestino Mahmoud Darwish diz: “E suas visões são seu exílio em um mundo onde uma sombra não tem identidade nem gravidade. Você anda como se fosse outra pessoa”. Para quem não o conhecia, como é meu caso, seu verbete no Wikipedia ensina que Darwish foi um importante poeta, ganhador de inúmeros prêmios, e que usava a Palestina em seus poemas “como uma metáfora para os temas da perda do Éden, nascimento e ressureição, e para a angústia do exílio”. Temas também presentes em cada fotografia de Elementary Calculus. (Fabio Messias)
PERMANENT ERROR – Pieter Hugo (Prestel, 2011)
Como a nova etapa de um terrível processo histórico, países outrora explorados pelo colonialismo – entre eles Vietnã, Índia e Nigéria –, são agora utilizados como áreas de descarte de lixo tecnológico, longe da vista dos “civilizados” cidadãos ocidentais que não devem perder o ânimo para o consumo vertiginoso de aparelhos cada vez mais complexos e descartáveis. Permanent Error, livro do fotógrafo sul-africano Pieter Hugo, apresenta o cenário apocalíptico de um destes locais situado nas cercanias de Acra, capital de Gana.
Ao invés de buscar a via fácil da visão paternalista que tal situação pode promover, reduzindo pessoas ao simples papel de vítimas, Hugo busca criar uma tensão entre os trabalhadores do lixão, que aparecem altivos em seus retratos (a maioria jovens que se permitem posar em trejeitos que em certa medida aludem à editoriais de moda), com a situação absurda que se passa em seu entorno – um cenário desolador, abarrotado de carcaças dos mais variados aparelhos tecnológicos, onde uma constante fumaça escura consome o horizonte.
O que pouco nos damos conta, e que o livro de Pieter Hugo parece enfaticamente sublinhar, é que o processo de globalização não diz respeito apenas aos meios de produção, mas também ao descarte – que, como é de se esperar, segue em igual medida o passo alucinado do consumo. (Marco Antonio Filho)
THE CASTLE – Federico Clavarino (Dalpine, 2016)
No romance O Castelo, de Franz Kafka, um agrimensor chamado K. é convidado a ir até um castelo para prestar seus serviços. Contudo, ao chegar a uma aldeia já no território do castelo, descobre que seus serviços não eram necessários. Adentrar o castelo e entender o que se passou se torna uma obsessão para K., mas os dias passam e ele não consegue o seu objetivo.
O romance de Kafka é assumidamente uma das principais referências e inspirações do fotógrafo Federico Clavarino para o seu fotolivro The Castle e, nele, Clavarino parece assumir o papel de K., o agrimensor, na sua tentativa de representar a noção de “Europa” –ou o mito de uma União Européia.
Assim como na agrimensura, uma ciência que se utiliza de diversas frentes de conhecimento para obter dados técnicos sobre determinados espaços, Federico capta suas fotografias e as estrutura no livro de maneira bastante cerebral, construindo uma narrativa em quatro capítulos bem definidos.
O terceiro capítulo, teoricamente o capítulo base do livro, também intitulado The Castle, sugere uma construção cheia de muros, tão instransponível quanto o castelo inatingível do livro de Kafka. A epígrafe que acompanha o título do capítulo dá o tema central para as fotografias que vem a seguir: “Boas cercas fazem bons vizinhos”. Clavarino aborda a ideia de cercas e muros de maneira bastante ampla, tanto literal como abstratamente, fotografando tudo que remeta a ela – cercas em si, um jovem isolado na música que toca em seu fone de ouvido, muros e colunas, símbolos econômicos, símbolos de status como uma boa vestimenta ou um automóvel, e por aí vai.
Para entender tanto as ambiguidades deste capítulo como também uma das motivações por trás do livro em si, vale citar que Clavarino produziu este trabalho em plena crise migratória de refugiados que assolou a Europa e chegou em seu auge por volta de 2015. Dentro deste contexto, fica no ar que este capítulo bem como o livro em si não se referem apenas às cercas e fronteiras que regem o “cada um por si” da União Européia, mas também a uma autocrítica no entendimento de que nem todos estão abertos a visitantes inesperados. (Fabio Messias)