Arqueologia do apagamento

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No ano de 1911, o fotógrafo equatoriano José Domingo Laso (1870-1927) lançou o livro Quito a la vista. Em uma série de fotografias de grande qualidade técnica, Laso apresentava imagens de uma Quito moderna, com seus edifícios, carruagens, catedrais, praças e monumentos – as ruas por vezes tomadas por homens e mulheres vestidos em trajes ao melhor estilo europeu.

Quito a la vista é um livro que segue certa lógica comum entre as colônias europeias então recém emancipadas. Assim como as fotografias produzidas no final do século XIX por Marc Ferrez sobre o Rio de Janeiro, a publicação de Laso buscava consolidar a imagem da capital equatoriana como uma metrópole moderna e cosmopolita, em consonância com os grandes centros urbanos do Velho Mundo.

José Domingo Laso, Teatro Sucre, do livro Quito a la vista, 1911. Detalhe.

Somente ao olhar mais atentamente as imagens do prestigiado fotógrafo é que se percebe, como borrões fantasmagóricos, pequenas manchas sobre a paisagem quitenha. Alguém indesejado fora apagado.

Passado mais de um século, François Laso, bisneto de José Domingo que seguiu sua profissão, debruçou-se sobre os registros presentes em Quito a la vista e indagou-se “quem eram essas pessoas e porque foram apagadas da paisagem de Quito (…)?”. Esta pergunta levou Laso, o bisneto, a uma intensa pesquisa que resultou na publicação La huella invertida: Antropologías del tiempo, la mirada y la memoria. La fotografía de José Domingo, editada pelo Centro de Fotografia de Montevideo em 2017.

Em sua pesquisa, François atesta que as manchas e borrões escondem os corpos de cidadãos indígenas que, na visão de José Domingo, não se encaixavam em suas necessidades estéticas de uma modernidade urbana e eurocêntrica. Trata-se, afirma o bisneto, de uma ação de “higienização” racista em nome do projeto colonizador.

José Domingo Laso, Teatro Sucre, do livro Quito a la vista, 1911.

Como um arqueólogo, François escavou os borrões nas imagens de seu bisavô para atestar que o extermínio dos povos originários passou também pelo apagamento de suas imagens.

François Laso é um dos convidados do 12º Festfoto. Além de acadêmico no campo da fotografia, Laso é um dos fundadores, juntamente com os irmãos Santiago e Juan Antonio Serrano, do coletivo de fotografia documental Paradocs. Em Porto Alegre, o fotógrafo equatoriano apresentará sua pesquisa sobre as imagens borradas de José Domingo Laso.

REFERÊNCIA

LASO, François. La huella invertida: Antropologías del tiempo, la mirada y la memoria. La fotografía de José Domingo. Montevideo: Centro de Fotografia de Montevideo, 2017. Disponível no site do CdF.

É fotógrafo, artista visual e professor. Doutorando e mestre em Poéticas Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS. Integra o conselho curador do 12o FestFoto.

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