Um protesto é uma imagem. Boa parte do que ocorre em seu percurso visa a atenção de um espectador que encontra-se fora da manifestação. Reproduz-se assim uma sucessão de imagens (que pouco ou nada mudaram ao longo do tempo): os punhos em riste; as palavras de ordem em cartazes; corpos aglomerados sob faixas que muitas vezes só podem ser lidas de um ponto de vista superior, um olhar que de alguma forma paira sobre os manifestantes. Até os recorrentes conflitos com os agentes do estado parecem entrar nesta espécie de protocolo – o que torna não apenas os manifestantes autores destas imagens/manifestações, mas também as forças oficiais de repressão.
Fotografar uma manifestação é, portanto, fotografar uma imagem. Neste caso, uma espécie de imagem-reflexo de uma situação de crise – aquilo que se projeta mais visivelmente nestes momentos, a canalização de todo descontentamento de uma parcela da sociedade em um único evento.
Não é de se estranhar, portanto, que desde as chamadas “jornadas de junho de 2013” um grande número de fotógrafos se empenham em documentar as manifestações que tomaram conta do país. Não apenas fotojornalistas cobrindo a pauta diária, ou ativistas empenhados em fazer a mensagem de protesto ressoar pelas redes sociais, mas fotógrafos que veem nas manifestações o assunto para um projeto pessoal que busca expressar a situação turbulenta vivida desde então (e que aparentemente está longe de chegar ao fim).
No entanto, há que se ponderar o quanto essas imagens de protestos refletem a complexa (por vezes absurda) situação que o Brasil vem vivenciando nos últimos anos. O quanto é possível contar do drama nacional a partir dessas imagens de eventos de certa forma roteirizados, quase protocolares?
É curioso que das 41 imagens que compõe o livro Faltam mil anos de História (Tempo d’Imagem, 2019), do fotógrafo porto-alegrense Gabriel Carpes (1990), apenas uma seja o registro de um protesto. Vencedor do 5o Prêmio Foto em Pauta, pode-se dizer que o livro é, ele próprio, a tentativa de expressar a situação de crise vivida pelo país (mais precisamente, a crise política, social e econômica consolidada pelo processo de impeachment da presidente Dilma Roussef, em 2016).
No desenrolar da sequência de imagens do livro, certo estado de suspensão predomina. As pessoas que fitam a câmera mostram-se um tanto quanto apáticas; os lugares, se não abandonados, parecem estar à espera de serem novamente ocupados, retomando uma rotina perdida.
A décima primeira fotografia da sequência, a que retrata um protesto, difere-se de tantas outras produzidas, compartilhadas e publicadas nos últimos anos, pois a faz não para mostrar que de fato o país foi tomado por uma onda de manifestações organizados por agentes de distintos espectros políticos. Esta imagem parece, antes de tudo, representar – entre o vermelho da bandeira do Partido dos Trabalhadores e o verde-e-amarelo da bandeira nacional, as pessoas caminhando para lados opostos, saindo de quadro – o estado de incerteza e desesperança que tomou conta do país.
O livro de Carpes passa ao largo dos fatos que levam o país à crise. Tampouco documenta a resposta dada pela população em forma de protestos e manifestações públicas. Gabriel Carpes parece compreender que os protestos, enquanto imagem, são apenas a superfície deste momento histórico. Não parece ser os gritos e conflitos das manifestações que melhor representam o atual estado do país, mas sim esta languidez que abate e sufoca o cotidiano nacional.
Talvez seja possível dizer de Faltam mil anos de História aquilo que a fotógrafa portuguesa Patricia Almeida (1970-2017) afirmou sobre seu livro Ma Vie Va Changer (Ghost Editions, 2015), que trata da crise vivida pelos países mediterrâneos nos primeiros anos desta década: “Não é um livro dramático ou triste, não dramatiza a crise. Contribuiu para a memória visual de um tempo, constituiu um documento para os historiadores do futuro.”
Gabriel Carpes é um dos convidados do 12º Festfoto.