Entrelaçadas uma a outra como se fossem uma coisa só, Mariane, sua mãe e sua irmã encaram a câmera e a espectadora. A foto faz parte da série Maria, só Maria (2017-) na qual a fotógrafa de Embu-Guaçu, município localizado na região metropolitana de São Paulo, registra a casa de sua família em seu cotidiano. Maria, só Maria evoca um nome sem sobrenome, um nome sem alma ou com uma alma exclusivamente coletiva, em busca de ressignificação. Maria, que no Brasil já foi muito utilizado como apelido para profissão de doméstica, é o nome da mãe de Jesus, a invenção cristã que busca controlar o desejo feminino, e é também o nome da mãe de Mariane. Filha de empregada doméstica, Mariane tem nas questões de classe um dos temas centrais de sua produção artística. Em suas imagens, há intimidade mas não há descontração. Há orgulho por uma trajetória de sustento mas há também uma reflexão que parte do seu condicionamento. O condicionamento delimitado por nosso lugar de origem. A empregada doméstica – profissão cheia de ambiguidade por tudo que ela vê e acompanha em suas interações de caráter profissional e íntimo, público e privado – é uma constante na família brasileira que geralmente está ausente nas fotos da família que acompanha e observa por anos. Aqui, pelo olhar poético da filha, Maria ganha uma casa, um marido, duas filhas e uma trajetória.
Nascida nos anos 1990, Mariane é parte da geração que viu a expansão e a otimização das câmeras digitais e da internet com suas redes sociais. Tal popularização da fotografia digital e das possibilidades de tratar e compartilhar as imagens, deixou mais evidente para o público o quanto a imagem é uma construção ideológica e subjetiva. Formada em fotografia pelo Senac, ela integra a parcela de fotógrafos e artistas que encontra nas universidades corpos docentes preparados para estimular a reflexão e orientar trabalhos centrados em imagens técnicas e/ou experimentais. Além disso, Mariane é também parte da geração no país que viu suas possibilidades ampliadas em função das ações afirmativas do governo. Foi cotista e é a primeira de sua família a cursar e concluir o ensino superior.
É dessa perspectiva que Mariane encena a sua própria realidade, a estranha e a transfigura, atribuindo às suas experiências pessoais contornos que podem ser discutidos com as ferramentas discursivas do universo da representação. Porém aqui transfigurar não quer dizer polir até ocultar a aspereza da realidade. A periferia paulistana é retratada por alguém que não via aquilo como exótico, e sim exibe com familiaridade sua primeira realidade possível.
A foto com a fachada de casa mostra uma estrutura inacabada que revela cada tijolo empilhado e grudado com cimento. Somos convidados por Mariane a entrar no lugar que sua família vive, conhecer o cenário que contorna suas lembranças. Ao invés de representar o chá de bebê da irmã a partir de uma festa em ação, Mariane escolhe mostrar o que fica. Uma melancólica mesa com os poucos pedaços de um bolo de merengue azul e branco, sob uma bandeja de papelão prata, acompanhado de duas garrafas pet de refrigerante. Como pano de fundo, vê-se o tanque e a máquina de lavar roupas. O mesmo fundo e o mesmo pátio compartilham com Mariane o ambiente do autorretrato no qual ela contém com uma lixa o incessante crescimento das próprias unhas.
No trabalho Lazer, Mariane se serve da única fotografia encontrada da mãe quando jovem, em uma das raras viagens que fez, e nos relembra que se hoje a fotografia é abundante, há algumas poucas décadas atrás ainda era recurso e hábito de poucos, restrito a algumas esferas da sociedade.
Na série Imagens para contextos específicos (2017-), Mariane registra seu percurso cotidiano de casa até o trabalho através de textos e imagens. O tempo morto do deslocamento ganha vida e migra para o patrimônio da memória. Uma raiz de árvore que brota contra um asfalto supostamente resistente, um tijolo fragilmente equilibrado em um pedaço de madeira.
Através da sua fotografia, Mariane nos leva a um ponto de vista que é também o de boa parte da sociedade brasileira.
A fotógrafa e artista visual paulistana Mariane Lima é uma das convidadas do 12 FestFoto. Sua produção aborda temas que ultrapassam o limite autobiográfico para refletir sobre questões como corpo, representação e relações de trabalho no atual cenário social e político. Mariane foi uma das ganhadoras da leitura de portifólio no 11 FestFoto, em 2018. É graduada em fotografia pelo Senac e atualmente frequenta Grupo de Estudos em Arte Contemporânea da Escola Entrópica, orientado pelo curador Paulo Miyada e pelo artista Pedro França. Parte de sua produção e mais informações podem ser encontradas em seu site.