Singularidade plural

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Humanae é o projeto da carioca Angélica Dass que consiste em um inventário cromático dos tons da pele humana. Formada em belas-artes pela UFRJ, Dass reside há pelo menos 12 anos em Madrid. Lá, casou-se com um físico espanhol que ela diz ser daqueles que, quando pega o primeiro raio de sol, fica da “cor do camarão”. A ideia do projeto veio quando ela, de pele negra – ou como ela mesmo define, “da cor de uma dessas barras de chocolate com pouca porcentagem de cacau” – foi sendo constantemente questionada sobre a cor que teriam seus filhos. Em 2012, Dass fotografou a família e os amigos e, na medida em que ia divulgando, foi ampliando o alcance do projeto.

Sabe-se que embora as cores sejam parte da realidade, o nome que damos e a relação que temos com elas é um tanto quanto arbitrário. Basta procurar o nome de uma cor no dicionário para se dar conta que são necessários vários elementos para exemplificar aquilo que uma cor é ou representa. No dicionário, amarelo é a cor que corresponde à sensação provocada na visão humana pela radiação monocromática cujo comprimento de onda é da ordem de 577 a 597 nanômetros. Essa é a realidade física da cor, mas ela é impalpável. Amarelo é para nós a cor da gema do ovo, do açafrão, do ouro e a definição de um indivíduo pálido. Associamos as cores a coisas que nos lembram delas, como demonstra sensivelmente o livro de artista Escala de cor das coisas, da gaúcha Letícia Lampert. Nele, Lampert apresenta as cores através do modelo de catálogo da Pantone, mas ao invés do industrial jato de tinta, as cores aparecem via fotografias de elementos que utilizamos para denominar e referenciar a cor na linguagem popular. O livro deixa evidente como as cores se tornam uma maneira de organizar símbolos e de transmitir mensagens. A maneira como associamos essas mensagens ao julgar a cor da pele de uma pessoa e o que ela supostamente pode ou não fazer por ter uma cor ou outra torna-se então uma questão política fundamental que Angélica Dass decide colocar em debate ao criar o seu projeto.

Em Humanae, a Pantone é evocada através da utilização do seu sistema alfanumérico de classificação. A execução do projeto consiste em fazer retratos das pessoas mais diversas. Dass fotografa cada pessoa em um fundo branco e se vale das possibilidades oferecidas pela tecnologia para extrair uma amostra colorida de 11×11 pixels do nariz de cada uma. O tom correspondente desse ponto é então procurado na paleta da Pantone e colocado como o fundo da pessoa retratada.

Nessa maneira de organizar a pessoas pela pele, Dass rompe com a associação hierárquica possivelmente contida em questões de raça, nacionalidade e/ou condição social responsáveis pelo racismo e pela discriminação. Reduz a cor a um código e coloca todas as peles em um mesmo nível. O catálogo inclui mais de 3700 imagens, realizadas em 28 cidades e em 18 países.

A receptividade, a repercussão e a potência do projeto fizeram Dass fundar o Instituto Humanae, uma plataforma que promove a diversidade enquanto valor a ser estabelecido no processo educacional. Professores e educadores entram em contato com ideias e ferramentas que auxiliam o diálogo relacionado a pele e a raça em sala de aula e são estimulados a criar outros materiais que contribuem para discussão do tema. Através do Humanae, Dass cria situações que procuram sacudir estigmas sociais historicamente estabelecidos, exercitando nossas lembranças, nossas associações e nossa sensibilidade. Em tempos mais que sombrios e posições totalitárias que classificam suas impressões das mais precárias e desastrosas maneiras, o convite e o suporte para falar da diversidade humana é fundamental para nossa sobrevivência. O projeto pode ser explorado no site da fotógrafa e integra a mostra coletiva do FestFoto que estará em exposição na Fundação Iberê Camargo a partir do dia 27 de abril.

É pesquisadora, mestre em Historia Teoria e Crítica de Arte e bacharel em Ciências Sociais, ambos pela UFRGS.

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