As imagens criadas por Karen Miranda Rivadeneira povoam a paisagem deslumbrante dos Andes com a sua própria ancestralidade. O trânsito entre os Estados Unidos e o Equador e a capacidade de se servir do que apreende desses dois mundos são elementos chave naquilo que dá sentido ao trabalho da artista. Rivadeneira é filha de equatorianos mas nasceu nos Estados Unidos. De lá, aos três anos, mudou-se com os pais de volta ao Equador, onde passou boa parte da infância. Sua formação, contudo, foi na School of Visual Arts, em Nova York. Atualmente, ela reside no estado do Novo México, enquanto a grande maioria dos seus registros fotográficos são realizados em séries que faz no Equador.
A artista deu início a sua trajetória impulsionada pela performance. Foi influenciada por artistas como Vitor Acconci e o Grupo Fluxus, para quem a fotografia importava por sua característica de registrar situações de maneira incompleta. Vitor Acconci certa vez disse que “se houver uma descrição verbal, se houver uma fotografia, é evidente que se trata apenas de uma referência ao trabalho e não do trabalho”. Essa característica aparece na importância que Rivadeneira dá ao processo, em um envolvimento afetivo que tem e desenvolve com aqueles que registra. Como se o trabalho perdesse em significado se não fosse fazer dela uma pessoa melhor. Ao mesmo tempo, a maneira como se posiciona diante da câmera, seus enquadramentos e o tratamento que dá as imagens fazem ver que a artista está totalmente consciente dos objetos que gera. Suas imagens são de uma beleza contemplativa, sincera e envolvente.
A relação com a performance fica especialmente evidente na série Other stories/Histórias Bravas na qual reencena situações experimentadas na infância em colaboração com a família. Junto às suas familiares, recria cenas que viveram (ou que gostariam de ter vivido) e que, por fugirem ao protocolo do álbum de família, jamais foram registradas. Rivadeneira publica as fotos com uma frase que as descreve e com a data que representa a memória, não o momento do registro, gerando um deslocamento em nossa percepção.
É enternecedor ver aquela mulher adulta em meio a mulheres mais velhas do que ela, em situações que estamos acostumados a presenciar e autorizar serem vividas somente por crianças. O contato pele a pele com a avó, o aconchego depois de mamar ao lado do seio da mãe ou de se sujar com farinha ao ajudar a tia a fazer pão, sentada de calcinha e camiseta em uma bancada ensolarada. Ela consegue um apelo que não é erótico nem lúdico, mas é os dois ao mesmo tempo, como se localizasse um erotismo perdido (ou abafado) em nossa infância.
A prática da artista ganha profundidade em sua relação com as comunidades equatorianas tradicionais, traçando uma espécie de fabulação mítica íntima da região. Em Nantar/Arutan, Rivadeneria fotógrafa os Shuar, comunidade residente na Amazônia equatorial. Para os Shuar, nas palavras de Rivadeneira, “o mundo é preenchido por entidades ou espíritos, arquétipos que representam a natureza dos humanos e seus diferentes estados.” Atenta a essa forma de ver o mundo, a artista produz imagens que se conectam ao conteúdo espiritual de uma população que aparece constantemente em situação de transe. A paisagem das montanhas é como que transfigurada em sonho, de modo que não importa mais se o que vemos é um feixe de luz milagroso ou um tornado apocalíptico mas sim que enche os nossos olhos com sua bravura.
O uso de recursos fotográficos que indefinem os seres, representados como vultos contornados por pontos brilhantes e incorporados ao fundo, fazem lembrar Cláudia Andujar em sua relação com os Yanomami. Tanto para Andujar quanto para Rivadeneira a imagem é mais verdadeira junto a sua manipulação técnica e não o contrário.
Em Piedra Redonda, Rivadeneira presta uma homenagem a Maria Matilde Auxiliadora Cunalata, que ela define como uma vidente, uma purificadora de almas, uma dançarina, uma performer, uma Yachaj. Aqui é evidenciada a capacidade de cura dessa mulher pertencente à linhagem Waranka, um grupo que antecede os Incas, e que mora em meio à selva. Rivadeneira registra uma serie de rituais com uma natureza que atua e contrasta com a medicina patriarcal e farmacológica.
Rivadeneira passa longe dá lógica documental, pretensamente mais próxima da realidade, para se dedicar a representar o que vê e intencionalmente constrói. Talvez a motivação não seja menos narcisista, mas é mais honesta. Ao mesmo tempo que faz uso de recursos e da arte apreendida no norte, procura resgatar valores e símbolos latinos-americanos, legitimando suas subjetividades e criando condições para que existam da sua própria maneira.
Se a diáspora, tema do 12º FestFoto, consiste em um povo que se dispersa sem desapegar de suas origens, num hibridismo que muda tanto quem chega quanto quem já estava ali, Rivadeneira, ao misturar procedimentos ocidentais com os temas e a lógica indígena latino-americana, vem como um exemplo potente. Parte da série Piedra Redonda integra a mostra coletiva do FestFoto que estará em exposição na Fundação Iberê Camargo a partir do dia 27 de abril. Grande parte da produção da artista pode ser encontrada em seu site.